sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Semana da Consciencia Negra


Besouro

                Por Ana Lucia Santana

Em uma época na qual os negros ainda não tinham conquistado sua liberdade, embora formalmente fossem considerados livres, alguns ex-escravos encontraram um caminho para lutar pelos seus direitos, uma estranha coreografia que mesclava luta e dança, conhecida como Capoeira. É neste cenário que surge um dos heróis mais lendários do Brasil, Besouro.

Nascido na Bahia, este símbolo do movimento negro logo se tornou um mito quando as pessoas, incapazes de explicar de outra forma suas constantes vitórias contra os policiais e as autoridades constituídas, passaram a atribuir este sucesso ao seu dom de voar. Manoel Henrique Pereira se transformou então no invencível Besouro.

Esse enigmático personagem da história brasileira veio ao mundo em 1897, oito anos depois da libertação legal dos escravos, em Santo Amaro da Purificação, cidade localizada no Recôncavo Baiano. Seus pais, João Grosso e Maria Haifa, eram ex-escravos.

Embora portadores do status de pessoas libertas, os negros não eram exatamente tratados como membros da sociedade. Na verdade eles faziam parte de uma massa informe, desprovida dos direitos mais elementares, como moradia, alimentação e trabalho.

Mergulhados neste contexto marginal, os ex-escravos praticamente perpetuam sua antiga condição, particularmente no campo, sob as garras dos mesmos fazendeiros e senhores de engenho que tanto se beneficiaram na época da escravidão. É este cenário que Manoel encontra ao nascer no interior da Bahia.

Aos vinte anos ele já é chamado de Besouro Mangangá, ou Besouro Cordão de Ouro. Analfabeto, ele já era um capoeirista de renome, a quem ninguém conseguia superar nesta luta. Apesar de ser um bravo guerreiro, ele também se submetia às condições de trabalho impostas pelos fazendeiros de sua terra, labutando arduamente na lavoura de cana. Só que o destemido negro não temia seus opressores, e não era preciso muito para que ele se rebelasse, o que contribuiu para a construção de sua fama.

Pouco se sabe sobre os caminhos que ele percorreu, mas não é difícil imaginar que suas atitudes tenham despertado a ira dos dirigentes daqueles tempos, os quais provavelmente o viam como um perigoso insurgente. As histórias lendárias que circulam sobre este personagem descrevem combates épicos com o corpo policial de então, dos quais Besouro sempre era o vencedor. Alguns diziam que ele tinha o ‘corpo fechado’, pois nem mesmo as balas o atingiam.

Seu apelido, Mangangá, explica miticamente sua incrível capacidade de fugir dos seus adversários – ele se refere a uma espécie de besouro que provoca uma contundente ferroada. Ou seja, o lutador derrotava o inimigo e logo após desaparecia sem deixar vestígios. Diz a lenda que ele simplesmente saía voando.

Sua morte também está envolta em mistério. Afirma-se que, depois de um confronto com servidores de uma fazenda, ele teria levado uma facada; acrescentam os mitos que a faca seria confeccionada com uma madeira ilustre chamada de ticum, única arma com poderes para transpassar uma pessoa que tinha o ‘corpo fechado’, de acordo com o universo religioso afro-brasileiro. Conforme a versão oficial, ele foi morto em uma armadilha organizada pelo filho de um fazendeiro.

Besouro está de volta, mais forte do que nunca, comprovando sua imortalidade como símbolo da cultura negra brasileira. Este mito foi resgatado pelo cineasta João Daniel Tikhomiroff, que por sua vez se inspirou na obra Feijoada no Paraíso, de Marco Carvalho. Ele procura resgatar esta história não como um filme documental, mas sim como uma mistura de ficção e fantasia.

A produção promete e acena com a possibilidade de uma indicação para a categoria de Melhor Filme Estrangeiro no Oscar. Mas seu maior mérito é tirar das sombras do esquecimento este fantástico personagem histórico, interpretado por Ailton Carmo.



 Onde sonham as formigas verdes
 

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

XI SEMANA DE LETRAS




Palavra [En]cantada: um filme de Helena Solberg
Por Priscila Santos

Para alguns estudiosos e observadores da literatura, a poesia se caracteriza por uma criação artística que existe sozinha: tem suas regras, suas formas, seus sons próprios e estes a fazem plena unicamente em si, podendo dispensar acompanhamentos. É comum que numa roda, reunindo esses mesmos estudiosos e observadores da literatura, lá pelas tantas, pelo quarto copo de vinho, alguém declare a sentença: Chico Buarque, por exemplo, não é poeta, é músico. A partir daí a conversa, antes consenso, vai virar uma discussão sem fim e depois de meses, dois ou três daqueles amantes das letras ainda estarão se odiando mortalmente. Fatalmente vão produzir alguns tratados que não nos tocarão em nada.
Palavra [En]cantada é um filme que ronda o mistério das palavras ditas e entoadas sem chegar perto desse tipo de debate onde um bom e velho veneno da vaidade academicista sempre mata um pouco mais a gente. Dirigido por Helena Solberg, com argumento de Marcio Debellian, o documentário segue uma reflexão a respeito dos momentos em que música brasileira e poesia convergiram.
Através do depoimento de grandes nomes da música nacional, Sodenberg nos leva a fogo brando pela história e escolas da música brasileira; dos morros cariocas à periferia de São Paulo, passando pela Bahia e pelo mangue pernambucano. O documentário parte da idílica existência dos trovadores, aqueles artistas medievais que inventaram a poesia musicada e a espalharam de tal forma que são considerados o marco zero da literatura como hoje a conhecemos. A partir daí nomes como Tom Zé, Lenine, Maria Betânia, Martinho da Vila, Lirinha do Cordel do Fogo Encantado, BNegão e o próprio Chico Buarque, vão falar sobre a presença da poesia em suas canções e dão versões sobre o porque e do como esses encontros acontecem.
O filme traz ainda imagens de arquivo recuperadas, algumas nunca vistas, como as de carnavais na Avenida Presidente Vargas, no Rio de Janeiro e encenações de Morte e Vida Severina pelo grupo de teatro da PUC (o primeiro a montar a peça, em 1965), além de raridades como a entrevista de Caetano Veloso, falando sobre porque combinou na sua música Coca-Cola e Brigite Bardot, e apresentações de repentistas do Nordeste em meados do século passado.
Na junção de todos os seus segundos e coisas ditas, Palavra [En]cantada nos faz descobrir muito mais sobre música, poesia e brasilidade do que muitos foram capazes de fazer. A contribuição é enorme: enfrentar a particularidade do caso nacional, onde a palavra escrita não conseguiu até hoje criar raízes fortes e onde a literatura só pôde se expandir através da oralidade - o que nos torna indivisíveis da maior parte da África - e abre um novo leque de possibilidades para entendermos a absurda riqueza de formas e sons da nossa língua e da nossa música. Solberg e Debellian pariram um filme essencial para quem ainda acredita que a beleza salvará o mundo.