Palavra [En]cantada: um filme de Helena Solberg
Por Priscila Santos
Para alguns estudiosos e observadores da literatura, a poesia se caracteriza por uma criação artística que existe sozinha: tem suas regras, suas formas, seus sons próprios e estes a fazem plena unicamente em si, podendo dispensar acompanhamentos. É comum que numa roda, reunindo esses mesmos estudiosos e observadores da literatura, lá pelas tantas, pelo quarto copo de vinho, alguém declare a sentença: Chico Buarque, por exemplo, não é poeta, é músico. A partir daí a conversa, antes consenso, vai virar uma discussão sem fim e depois de meses, dois ou três daqueles amantes das letras ainda estarão se odiando mortalmente. Fatalmente vão produzir alguns tratados que não nos tocarão em nada.
Palavra [En]cantada é um filme que ronda o mistério das palavras ditas e entoadas sem chegar perto desse tipo de debate onde um bom e velho veneno da vaidade academicista sempre mata um pouco mais a gente. Dirigido por Helena Solberg, com argumento de Marcio Debellian, o documentário segue uma reflexão a respeito dos momentos em que música brasileira e poesia convergiram.
Através do depoimento de grandes nomes da música nacional, Sodenberg nos leva a fogo brando pela história e escolas da música brasileira; dos morros cariocas à periferia de São Paulo, passando pela Bahia e pelo mangue pernambucano. O documentário parte da idílica existência dos trovadores, aqueles artistas medievais que inventaram a poesia musicada e a espalharam de tal forma que são considerados o marco zero da literatura como hoje a conhecemos. A partir daí nomes como Tom Zé, Lenine, Maria Betânia, Martinho da Vila, Lirinha do Cordel do Fogo Encantado, BNegão e o próprio Chico Buarque, vão falar sobre a presença da poesia em suas canções e dão versões sobre o porque e do como esses encontros acontecem.
O filme traz ainda imagens de arquivo recuperadas, algumas nunca vistas, como as de carnavais na Avenida Presidente Vargas, no Rio de Janeiro e encenações de Morte e Vida Severina pelo grupo de teatro da PUC (o primeiro a montar a peça, em 1965), além de raridades como a entrevista de Caetano Veloso, falando sobre porque combinou na sua música Coca-Cola e Brigite Bardot, e apresentações de repentistas do Nordeste em meados do século passado.
Na junção de todos os seus segundos e coisas ditas, Palavra [En]cantada nos faz descobrir muito mais sobre música, poesia e brasilidade do que muitos foram capazes de fazer. A contribuição é enorme: enfrentar a particularidade do caso nacional, onde a palavra escrita não conseguiu até hoje criar raízes fortes e onde a literatura só pôde se expandir através da oralidade - o que nos torna indivisíveis da maior parte da África - e abre um novo leque de possibilidades para entendermos a absurda riqueza de formas e sons da nossa língua e da nossa música. Solberg e Debellian pariram um filme essencial para quem ainda acredita que a beleza salvará o mundo.
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