sábado, 18 de setembro de 2010

Ciclo de Filmes comentados: Ingmar Bergman



O Sétimo Selo de Bergman

Por Breno Rodrigues de Paula

Na maioria das vezes, o Artista conjuga o seu nome junto com a sua obra, de modo que ele torna-se sinônimo de sua criação. É o que acontece com os cineastas sueco Ingmar Bergman. Não conseguimos dissociar filmes tais como: “Monika e o desejo” (Sommaren med Monika) – 1952, “O sétimo selo” (Det sjunde inseglet) – 1956, “Morangos silvestres” (Smultronstallet) – 1957, “Gritos e sussurros” (Viskningar och rop) – 1972, “Sonata de outono” (Höstsonaten) do nome Bergman. Bergman foi um gênio que se dedicou à produzir belos filmes, como um dos mais importante, não só de Bergman, mas também da Sétima Arte: “O Sétimo Selo”.

Poucas obras artísticas, criada pelo homem, na sua eterna e incessante busca pelo conhecimento do mundo e de si próprio, retratam de forma tão poética e profunda os anseios do homem na busca da sua constituição metafísica como o filme de Bergman “O sétimo selo” (Detsjunde inseglet) – 1956. No filme, após dez anos, um cavaleiro Antonius Block (Max Von Sydow) retorna das Cruzadas e encontra o seu país (Suécia) devastado pela peste negra. Sua fé em Deus é sensivelmente abalada e enquanto reflete sobre o significado da vida, a Morte (Bengt Ekerot) surge à sua frente querendo levá-lo, pois chegou sua hora. Objetivando ganhar tempo, convida-a para um jogo de xadrez que decidirá se ele parte com a Morte ou não. Tudo depende da sua vitória no jogo e a Morte concorda com o desafio, já que não perde nunca. Aqui a morte é o cerne da questão levantada por Bergman. A principal questão metafísica humana: seria a morte a principal manifestação empírica da realidade ou a mera condição que o homem está sujeito aos caprichos divinos de Deus, do Diabo ou da Morte. Estas questões, inserem-se, no filme, numa conjuntura caótica e angustiante para o cavaleiro e seu escudeiro.

A cena do jogo de xadrez com a Morte, mostra-se de beleza estética cinematográfica única na sétima arte. Após acordar na praia, o cavaleiro lava o seu rosto e reza baixinho, ao virar a sua face para trás, ele defronta-se com a figura da Morte. Assustado e com medo, o cavaleiro pergunta se a Morte gostaria de jogar xadrez, já que lerá que todos jogam xadrez, inclusive a Morte. A morte acha que isto é uma artimanha do cavaleiro para que não seja “levado”, mas concorda em iniciar a partida. O interessante que a Morte não é retratada como a irmã mais velha dos “perpétuos” ou como uma entidade monstruosa, na acepção física, ela se aprece com um homem e se veste como um monge. Nos intervalos dos lances, o cavaleiro e seu escudeiro andam pela vila e presenciam diversos acontecimentos como a morte de uma feiticeira, que supostamente havia mantido relações sexuais com o demônio, na fogueira. Conhecem uma trupe de artista e conhece Mia e Jof, que lhe dão morangos e leite, como num ritual semelhante à “Santa Ceia”.

Prossegue a partida de xadrez e o cavaleiro leva xeque – mate da Morte, que o informa que ele será levado na manhã seguinte. A Morte iniciou o jogo sabendo que ninguém pode vencê-la. Mesmo com táticas e estratégias do xadrez, o cavaleiro não pode vencer a morte. Todos dançam, ao final, a sua música, todos de mãos dadas. Todos sobem a colina ritmicamente fazem passos coordenados, cíclicos. Mas o silêncio da abertura do sétimo é quebrado pela dança da morte, que com a sua música, assim como o Flautista de Hamelin, leva os homens a conhecer a sua mais complexa realidade: a existência humana.

Bergman retratara o homem frente às questões tais como a morte, Deus, Diabo, efemeridade da vida, solidão, alienação. Em suma, retratara o homem na busca da transcendência da sua condição meramente humana, através da única forma que o homem tem para transcendê-la: a Arte. 



 


Fanny e Alexander
AS MÁSCARAS DE BERGMAN

Os amantes do cinema clássico americano, de décadas anteriores aos anos 1950, refugiam-se em filmes de aventura e romance justamente para esquecer que existem os problemas internos e alguns eventuais desequilíbrios atribuídos a seres humanos. Pareciam, mesmo enquanto alegravam platéias, produtos guiados pela lógica do gênero aos quais serviam. Como esperar de Keaton ou de Astaire alguma leitura freudiana sobre os freqüentes conflitos sexuais presentes nas pessoas? Os personagens da ficção promovida pelo cinema de massa, portanto, quase sempre estavam longe de determinados temas presentes em trabalhos de outros cineastas. O círculo de arte, ou mesmo o tempo – e depois a redescoberta –, eram o refúgio de alguns artistas com temas "pouco agradáveis". No cinema clássico americano, em grande parte dos filmes os personagens pouco demonstravam crises existenciais. Viviam de acordo com as regras básicas da aventura, romance, drama e, às vezes, de algum mundo mágico onde intenções sexuais e medos internos ainda não haviam chegado. Menos ainda, tinham seus interiores expostos como fora observado mais tarde, de forma visceral por alguns cineastas. Na década de 1920, homens como Buñuel buscavam novas amostragens e significados. Enfrentavam, em contrapartida, lançamentos tumultuados e até mesmo a proibição de filmes, como ocorreu com A Idade do Ouro. A perseguição pela estética diferenciada, por trabalhos que não mostrassem a mera utilização da forma convencional do cinema como divertimento, com o tempo encontrou artistas sempre dispostos a reforçar esse caminho. Sem homens como Ingmar Bergman, o cinema ainda viveria meramente no campo externo, de intenções pouco explicadas. Também não seria desgrudado do chamado "entretenimento", igualmente descrito como um filme ligado às fórmulas que o faziam se enquadrar a um gênero. Mas claro que havia exceções no período clássico, como Renoir, Pabst, Lang e Dreyer. Verdadeiros autores.

Com Bergman, o mergulho à alma, ao interior humano – frágil, complexo, desafiador –, tornou-se uma necessidade de exploração estética. Parece impossível representar em imagens a condição humana de muitos que choram em silêncio, que, como as crianças de Fanny e Alexander, pensam dialogar com os mortos e vêem o mundo de forma diferente dos personagens de Dickens do período clássico, aventureiras do "lado" externo, com explicações, ao fim, mais precisas. Com esse filme, do início dos anos 1980, Bergman retorna à estética grandiosa. Desfila, em seqüências, suntuosidade como poucas vezes se viu em sua obra. Não esqueceu, felizmente, os artifícios que antes o tornaram grande. A criança, para tentar resumir o que o cineasta deseja, é uma peça mais importante que o baile que a circunda, que as pessoas cujas intenções não entende por completo – mesmo sem esquecer que ambas as esferas não vivem separadamente. O castelo de sua imaginação é maior enquanto a composição física, de grande beleza, é menor às necessidades do texto. Assim, pode se diferenciar o cinema e as buscas de Bergman quando comparado ao Visconti dos anos 1960, quando a suntuosidade da imagem tinha um papel tão importante quanto os personagens que percorriam os ambientes. Não se trata de uma comparação entre tais mestres, cada um em sua cruzada de explorações artísticas.

Fanny e Alexander não é um resumo da obra de Bergman, um possível capítulo final. O cineasta, após esse filme, ainda continuou trabalhando e manteve uma relação com a arte no teatro e na televisão. Os palcos são velhos conhecidos do diretor. Já havia feito filmes sobre o tema, como Noites de Circo e O Rosto, e parte de sua formação e busca das intenções humanas, como se a representação fosse inerente, estão ligadas à dramaturgia. A lição de Bergman está próxima da lição de Fellini, apesar de ambos estarem distantes em suas amostragens, estilos e inclinações às formações de seus personagens; também distante dos dois está Buñuel, que, ao invés de enveredar pelas dúvidas religiosas, como o sueco, aderiu à crítica fervorosa, à devoção de que a religião poderia castrar ainda mais os já complicados homens em relação com o mundo. Com Fanny e Alexander, Bergman chama a atenção ao olhar infantil. Seu trabalho mais autobiográfico também concede demasiado espaço aos adultos, relacionados com as crianças em pé de igualdade quando devem discutir certos assuntos ou mesmo dividir a culpa por algo. As crianças de Bergman são lançadas à fogueira dos erros humanos, de pais e padrastos confiantes na falsa razão dos dogmas religiosas. Para o pequeno protagonista e sua irmã, dois caminhos são mostrados: o teatro e a religião ortodoxa. O problema é que, enquanto guiados pelos mais velhos, como marionetes em busca de uma fuga, não podem evocar suas escolhas facilmente.
O lado bom, o teatro, é fotografado pelo mestre Sven Nykvist com claridade, com formas e cores que levam o espectador a pensar em dias felizes. São momentos em que as crianças vivem tempos de harmonia com os mais velhos, em festas ligadas à exaltação da vida pelo teatro. Eis o lado otimista de Bergman – também sua salvação promovida pela arte –, que logo seria eclipsado pelos interessantes conflitos com início na morte do pai de Fanny e Alexander (interpretado por Allan Edwall). Referência óbvia é o fato de estar encenando Hamlet no momento em que começa a se sentir mal, logo depois levado para casa. Uma cena de extrema beleza e sensibilidade mostra Alexander (Bertil Guve) relutando em se aproximar do pai. A mão do homem prende-se à do filho, como se estivesse contida nessa ação a impossibilidade de fuga do espírito, que mais tarde retorna para conversar com as crianças. Bergman dialoga com seu passado, com Shakespeare e com a vida dedicada aos palcos. O outro lado do texto, uma espécie de inferno às crianças, começa quando a mãe dos pequenos protagonistas decide se casar. Interpretada Ewa Fröling, Emilie personifica a beleza ainda jovem de uma mulher envelhecida pelas amarguras impostas por escolhas erradas e mesmo pelo seu próprio destino. Como uma mulher do início do século XX, não resta a ela muitas escolhas. Casa-se com um bispo ultra-religioso – aparentemente uma personificação malévola do próprio pai de Bergman –, interpretado na medida por Jan Malmsjö, talvez a melhor surpresa do filme.

Presos numa espécie de masmorra, as crianças passam a ser educadas sob os códigos da religião impressa pelo poder maior: o homem que manda na casa, como em sua esposa – obrigada a subtrair todo seu histórico de vida passada e começar do zero – e nas criadas. Com a mudança dos personagens também chega, de forma inevitável, a mudança das cores. A fotografia de Nykvist fica ainda mais rica enquanto a luz tenta invadir a escuridão. Como em outros filmes de Bergman, as sombras estão expostas ora ao fundo, ora à frente, dando oportunidade para que a luz invada algumas lacunas que revelam os rostos. Cena que evidencia tais formas dá-se no momento em que Alexander, libertado das amarras do padrasto, sai durante a noite para ir ao banheiro na casa do judeu Isak Jacobi (Erland Josephson). Na caminhada, perde-se pelos cômodos e encontra algumas marionetes, assim como, novamente, a imagem do pai. As sombras e a pouca revelação da vida, mesclada à face de desespero do jovem que acredita estar em contato com Deus (uma marionete de barba branca), é um dos pontos altos do filme. Depois, Alexander encontra dois rapazes que moram com Isak. Um deles vive preso em um cômodo. Em poucos minutos com o protagonista, narra, como se conseguisse prever, o destino do malvado bispo.

A obra de Bergman traz à mente um homem sereno e em silêncio no set de filmagem. Vê-lo dirigir os atores em Fanny e Alexander surge como uma surpresa. Em ação, seja na escolha dos enquadramentos, da composição e em conversas com seu parceiro Nykvist, Bergman mostrava grande vibração. Era como se pudesse fazer, àquela altura, o que bem desejasse, com a estatura de um verdadeiro mestre sem medo de errar ou de ser reprovado. Traz em cena também vários colaboradores do passado, como Josephson, Gunnar Björnstrand e Harriet Andersson, como Justina, uma das sinistras criadas do bispo. Também em cena estão atores que mais tarde fariam carreira de sucesso, como Lena Olin, que antes já havia feito uma pequena ponta em Face a Face, de 1976.

A exemplo de outros mestres da sétima arte, Bergman ajudou a definir o sentido do cineasta como um autor. Antes mesmo da nouvelle vague estourar, Jean-Luc Godard, em um artigo publicado na revista Arts, em julho de 1958 (um ano antes de Acossado), faz elogios à reestréia de Monika e o Desejo nos cinemas parisienses – "O acontecimento cinematográfico do ano" – e a relação de amor da França com o sueco. Mas, diferente da maioria dos filmes de Bergman, Fanny e Alexander tem gente demais em cena e arquitetura visual suficiente para fazer a platéia se sentir em um filme de verdade, pois muitos trabalhos do cineasta – como os de Godard e Rohmer – são usualmente acusados de serem "artísticos" em excesso. Não por acaso, é considerada sua obra mais acessível, longe de seu máximo – esse sim um resumo de suas buscas e amostras – observado em Quando Duas Mulheres Pecam. O que atrai tanto no caso de Fanny e Alexander é a fatalidade da convivência entre o lado bom e o ruim, representados em diferentes usos de luz ao longo da caminhada do personagem Alexander, uma espécie de alter ego de Bergman. Nem mesmo sua mãe pode salvá-lo, ou Deus, de quem reclama em determinado momento. Em uma cena que beira o insuportável, o bispo tenta mover a consciência do jovem a pensar como ele, fazendo então da pequena mente um fragmento submisso e controlado. Mais do que dotado do poder de ver espíritos, o jovem, de acordo com o texto, depende de sua imaginação. Esse, segundo Bergman, é o milagre de ser criança. E a riqueza é ainda mais nítida quando se imagina que o cineasta trouxe suas lembranças para mostrar como a arte, e não os dogmas religiosos, salvaram sua vida.Cinema sem Tempo

FANNY E ALEXANDER:
"Fanny & Alexander" é um magnífico, empolgante e ambicioso filme sueco. Realizado pelo grande cineasta Ingmar Bergman, sua história acompanha os maus-tratos sofridos por duas crianças, Fanny e Alexander, principalmente este último, quando sua mãe viúva decide se casar com um bispo luterano que, agindo como um verdadeiro tirano, exige que ela deixe para trás sua casa, vestidos, jóias, bens, seus amigos, família, idéias, hábitos e tudo o mais que possa lembrar a vida que levava anteriormente.
Tendo recebido seis indicações ao Oscar, este filme sueco foi agraciado com nada menos quatro estatuetas, inclusive a do Oscar de Melhor Filme em Língua Estrangeira.

A direção de Bergman é perfeita, mantendo um ritmo adequado a prender a atenção do espectador do início ao fim. O belo trabalho apresentado por Sven Nykvist, fotógrafo preferido do cineasta, assim como, o figurino assinado por Marik Vos, são dois outros quesitos que merecem destaques.

Como na maioria de seus filmes, os questionamentos religiosos acham-se também presentes em "Fanny & Alexander". Quando as crianças encontram-se na casa do judeu Isak Jacobi, num determinado momento, por exemplo, o questionamento de Alexander sobre a existência de Deus é extremamente pesado, que não ouso repeti-lo. Em seu universo, o cineasta cria espaços para cristãos e judeus, ricos e pobres, sãos e insanos, jovens e idosos, fantasmas e magia, além de uma galeria de personagens inesquecíveis por suas peculiaridades.

O filme basicamente se inicia e termina com a família reunida, em torno de uma mesa: no início, para comemorar a passagem do Natal e, no fim, para celebrar o batismo de duas crianças.



A Hora do Lobo
 por Tiago Lipka

A Hora do Lobo começa de maneira particularmente esquisita. Enquanto os créditos iniciam, o som da equipe de filmagem e de Ingmar Bergman dando instruções a equipe pode ser ouvido. Em seguida, Alma (Liv Ullmann) conversa com o público, confessando coisas que ainda veremos no segundo ato do filme. Única obra de terror que Bergman produziu, A Hora do Lobo é um pesadelo que vai ficando cada vez mais real conforme o filme passa. Lidando com alucinações de um personagem que sofre de insônia, Johan (Max Von Sydow), Bergman deixa de lado no início do segundo ato se o que vemos é real ou imaginação, aliás mais do que isso: quando ouvimos o diretor gritar "Ação" no início, Bergman já deixou claro que o filme, era só isso, um filme. Portanto por mais que vejamos os personagens vivendo sua realidade, para o público, nada daquilo é real.
Mas o belo roteiro de Bergman nos coloca lado a lado com Alma, e é através dela que acompanhamos a história do filme. Alma e Johan são um casal que, fugindo de uma crise de Johan viajam a uma ilha pacífica. Porém, os habitantes da ilha começam a visitar Johan com cada vez mais frequência, e suas características peculiares vão assustando cada vez mais o casal.
A fotografia do filme é maravilhosa e a trilha sonora é um show a parte. Agressiva e perturbadora, é a música que evoca o clima de terror que Bergman planejara. E por falar no diretor, seu trabalho nesse filme é explêndido, e o melhor até hoje que já conferi: o início do filme se revela estático e com longos planos mostrando diálogos sem cortes, no segundo ato é substituída por uma câmera nervosa (em especial a cena do jantar no castelo). Além disso, o diretor cria algumas das imagens mais perturbadoras de seus filmes, como o garoto morto que flutua no mar, ou os donos do castelo rindo enquanto Johan está com sua amante.

Em se tratando de Ingmar Bergman, já sabemos que o filme é um verdadeiro tijolo, ou seja é parado, cheio de pausas e silêncio que se acumulam e fazem a maioria das pessoas achar chato. Porém, no caso desse filme, a crescente tensão e as surpresas que seus personagens acabam revelando prendem a atenção do espectador (e acredito que seja o filme mais "acessível" que já vi de Bergman).
E ao final, resta apenas uma pergunta: Seríamos nós, o público, os fantasmas de Alma?


 
O Silêncio

Por Demetrius Caesar 
Não apenas um filme, reflete todo o pensamento de uma geração.

Duas irmãs estão no exterior a caminho de casa. Elas talvez mantenham uma relação incestuosa lésbica. Uma delas é tradutora e se embebeda diariamente para tentar suportar as dores de uma doença maligna que a destrói por dentro. A outra irmã, mãe de um garoto, aproveita as tardes quentes do verão russo para visitar bordéis e satisfazer seus desejos neuróticos de dominação e submissão.

Para falar de O Silêncio, de Ingmar Bergman, derradeira parte de sua “Trilogia do Silêncio”, é bom voltar ao ano de 1964, quando os estudantes atearam fogo em Paris. Só durou duas semanas o qüiproquó, mas os reflexos, como todos sabemos, foram muitos e duradouros. Já teria valido a pena só por ter dado assunto a tantos ótimos filmes. Talvez outro ótimo reflexo foi ter impedido a premiação do Festival de Cannes daquele ano – é brincadeira.

O ano 1964 entraria para a história de qualquer forma, pois foi a o ano de Bande à Part (Jean-Luc Godard), Gertrud (Carl Dreyer), Marnie, Confissões de uma Ladra (Alfred Hitchcock), Uma Mulher Casada (Jean-Luc Godard), O Esporte Favorito dos Homens (Howard Hawks), Deserto Vermelho (Michelangelo Antonioni), A Terra do Sonho Distante (Elia Kazan), O Silêncio (olha ele aí!) e Para Não Falar de Todas Essas Mulheres (ambos de Ingmar Bergman), além de O Criado  (Joseph Losey, para muitos, a sua obra-prima). Essa é, pela ordem, a lista dos dez melhores filmes do ano feita pela revista francesa Cahiers du Cinéma, então a maior referência cinematográfica mundial.

Mas havia muito mais: Os Guarda-Chuvas do Amor (Jacques Demy), Um só Pecado (François Truffaut), Caravana de Bravos (John Ford), Dr. Fantástico (Stanley Kubrick), Minha Bela Dama (George Cukor, que venceu o Oscar), Diário de uma Camareira (Luis Buñuel na França), o magnífico A Mulher de Areia (Hiroshi Teshigahara), Crepúsculo de uma Raça (John Ford) e até Os Reis do Iê-Iê-Iê (Richard Lester). E olha que só usei a Cahiers de fonte, tem muito mais.

Pois O Silêncio foi eleito o oitavo melhor filme do ano com concorrência pesada, inclusive o diretor, pois o próprio Bergman entrou no duro páreo com outro de seus filmes, Para Não Falar de Todas Essas Mulheres. O cineasta sueco estava no auge do prestígio, já havia ganhado Cannes e o Oscar (esse, duas vezes), gozava de fama internacional (os cinéfilos brasileiros devoravam seus filmes com fervor quase religioso, um paradoxo) e garantido seu nome na história.

Bergman desenvolveria tema semelhante, do embate entre mulheres que psicologicamente se imiscuem, com insuperável maestria no seu filme seguinte, Persona (66), ou mesmo numa de suas obras-primas, Gritos e Sussuros (73). Bergman repetia os temas, mas são as variações deles que realmente importam. Em O Silêncio, é impossível saber qual das irmãs é projeção da outra, qual seria a verdadeira ou quem é o ego liberado da primeira, se a reprimida intelectual ou a liberada fútil. No duelo verbal, confrontadas, ambas se aniquilam. Cada uma quer ser uma parte da outra, têm inveja, mas não suportam as limitações.

Em resumo, falar de O Silêncio é, portanto, falar de um tempo mítico em que o cinema não era uma diversão, mas a legítima representação artística do que pensava, ansiava e esperava toda uma geração. O ideal marxista de 64 provou-se inviável e foi suplantado pela democracia capitalista. Os filmes, porém, resistiram ao tempo. O Silêncio tem os excessos da época e não supera as duas primeiras partes da “Trilogia do Silêncio”: Através de um Espelho e Luz de Inverno. No entanto, não há espaço hoje para esse tipo de filme; não são mais feitos. Eles são, como o ideário daquela época, apenas utopia.


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